foto: Wim Wenders
Pude visitar a exposição de fotos do cineasta alemão Wim Wenders, em cartaz no Masp, em São Paulo, e para mim foi tão significativa que tive o desejo de escrever um conto sob sua inspiração. Ao longo do processo de escrita, pude experimentar uma importante revelação, algo inédito para mim. Abaixo, transcrevo o conto.
Pude visitar a exposição de fotos do cineasta alemão Wim Wenders, em cartaz no Masp, em São Paulo, e para mim foi tão significativa que tive o desejo de escrever um conto sob sua inspiração. Ao longo do processo de escrita, pude experimentar uma importante revelação, algo inédito para mim. Abaixo, transcrevo o conto.
Foi em uma tarde cinzenta de domingo que Clarissa decidiu ir ao Museu de Arte de São Paulo, para visitar a exposição de fotos do cineasta Wim Wenders. Ela não era uma exímia conhecedora de suas obras, mas havia assistido aos seus filmes Paris, Texas e Asas do Desejo e destes ainda mantinha, em sua memória, algumas reminiscências.
Desde o período em que cursava a faculdade de jornalismo, seu interesse pessoal pelas artes visuais sempre esteve voltado, particularmente, para a pintura, o que tornava menos usual o seu contato com mostras fotográficas. Mas, ao se deparar com uma cena apresentada em uma fotografia, Clarissa certamente buscaria vivenciar o instante captado pelo olhar do fotógrafo. E ela ousaria ir além. Ela se sentiria incitada a desnudar a intenção do profissional, como se ela pudesse desvendar o mistério que revestiria a imagem. E isto a fascinava.
Seu entusiasmo, por conhecer as fotos do autor alemão, também fora suscitado a partir da temática dos trabalhos reunidos como: Lugares, Estranhos e Quietos. Estes eram contextos de certa forma conhecidos para a mulher que ela se tornou, aos 35 anos, descasada, sem filhos, e que já havia viajado por muitas cidades, em diferentes países. Sempre em busca de seu lugar próprio. De sua verdadeira vocação. Nesta trajetória, por vezes, ela pôde experimentar momentos de quietude e de solidão, permeados por conflitos e estranhamentos.
É verdade que, para Clarissa, o contato com as várias manifestações artísticas, de uma maneira geral, delineava um certo modo de estar no mundo. Por muito tempo, ela colheu, do mosaico cultural mundial, diferentes conhecimentos que a ajudaram na consolidação de seu caráter e na revelação de seu mundo interior. Por intermédio da expressão do artista, foi possível legitimar a sua autoexpressão e a sua consequente visão de mundo.
Sua ida ao MASP, naquela tarde, ainda fazia parte deste cotidiano. Era uma espécie de ritual que a fazia se sentir viva. E que a inspirava para a vida.
Ao percorrer as poucas salas da mostra e ao contemplar as imagens, Clarissa reconheceu na predileção do autor por paisagens desertas, desabitadas e vazias, uma intencionalidade. Como se Wenders, propositadamente, almejasse registrar uma imagem capaz de capturar uma atmosfera muito peculiar da espera, da expectativa. Ela o imaginava com a câmera nas mãos, ansioso, aguardando o momento ideal para representar o nada, a ausência, o vazio. E, para ela, havia uma ressonância destas cenas em sua própria vida pessoal, que em muitos momentos esteve à deriva e que, ultimamente, clamava por um momento de pausa, para que algo novo pudesse emergir.
Ao mesmo tempo, as fotos também buscavam representar o estranho, o inusitado e se esgueiravam por caminhos por vezes pouco usuais, espaços completamente desertos, inabitados, ou à espera de uma ocupação. Para Clarissa, na medida em que admirava as fotos, muitas delas em grandes dimensões assemelhando-se a quadros, ela pôde vislumbrar a síntese por traz da lente do artista. Uma comunhão capaz de representar o profundo silêncio existente no interior de certos lugares, por ora de natureza bizarra; por vezes quietos em decorrência da ausência de vestígios da civilização contemporânea humana e, em algumas ocasiões, localizados no ínterim destas duas condições.
Foi, seguindo os seus instintos mais primitivos e possivelmente o seu imaginário, que ela se posicionou diante de uma foto que retratava uma região de moradias populares da Armênia. O elemento central da imagem era uma imensa roda-gigante, notadamente inoperante e abandonada em uma área extensa e vazia. De um ângulo da foto, avistava-se o enorme brinquedo. De outro, alguns prédios e casas sem a presença de pessoas. Inevitavelmente, ela passou a conjeturar sobre as várias situações inerentes a esta cena. Que lugar seria este? A região teria sido devastada por uma guerra? Há quanto tempo o brinquedo teria sido desativado? Qual o impacto da ausência da diversão para a população?
Imersa nestes pensamentos inquietantes, ela seguiu o caminho de volta para casa, sentindo-se levemente excitada por construir um significado e um possível desfecho para aquele cenário ainda inconcluso em sua mente. Em sua trajetória, ela passou por esquinas, atravessou cruzamentos e por vezes até esbarrou em pessoas, porém nada a resgatava de seu mundo interior mergulhado em fantasias e especulações.
Deteve-se em imaginar a magnitude da perda para os habitantes daquela região. Outrora alegres e festivos. Agora, pairando sobre eles uma atmosfera de destruição, de abandono e de tristeza. E a roda-gigante deteriorada simbolizaria toda a incapacidade de reação dos homens, mulheres e crianças daquela vizinhança, frente ao medo, à incerteza, a algo extremamente ameaçador. A impossibilidade da diversão seria uma conseqüência direta da resignação daquelas pessoas. Como se o direito à felicidade lhes tivesse sido arrancado precocemente. Como uma plantinha ao ser colhida antes do amadurecimento. Como abrir um botão de rosa com os próprios dedos. E, desta forma, os habitantes daquela região longínqua seriam incapazes de reconhecer neles próprios uma fonte de felicidade.
Neste limiar, Clarissa experimentou um lampejo de sua infância. Muito próxima de sua casa, também existiu uma roda-gigante, que um dia fez parte de um modesto parque de diversões. O extenso terreno também fora ocupado, em algumas oportunidades, por um circo. Às vezes, tornava-se baldio servindo como pasto para cavalos dos carroceiros. A imagem da enorme roda-gigante era algo familiar para ela. Provavelmente, apenas neste momento, ela pôde se aproximar da realidade daquele povo da cidadezinha da Armênia. Talvez, somente agora ela conseguisse sentir os cheiros, ouvir os sons e visualizar as cores e luzes tão características de um parque de diversões. E ela também conseguiu reconhecer e sentir a reverberação mais íntima da perda de um parque de diversões. E, então, Clarissa novamente sentiu a solidão tão própria deste imenso silêncio inescrutável que caracteriza o abandono e o desamparo.
De uma maneira instintiva, livre e muito libertadora, Clarissa respirou longa e profundamente e decidiu que, no dia seguinte, ela buscaria uma nova exposição. Talvez desta vez, procurasse se entregar à contemplação de quadros de Madonas. E como se fosse uma nova oportunidade, encontraria nos símbolos, nos ícones, nas cores, no indizível, um alimento para a sua alma. Há muito tempo, ávida por um contorno e prenhe de uma completude. E continuaria a sua jornada em busca de si mesma.
Desde o período em que cursava a faculdade de jornalismo, seu interesse pessoal pelas artes visuais sempre esteve voltado, particularmente, para a pintura, o que tornava menos usual o seu contato com mostras fotográficas. Mas, ao se deparar com uma cena apresentada em uma fotografia, Clarissa certamente buscaria vivenciar o instante captado pelo olhar do fotógrafo. E ela ousaria ir além. Ela se sentiria incitada a desnudar a intenção do profissional, como se ela pudesse desvendar o mistério que revestiria a imagem. E isto a fascinava.
Seu entusiasmo, por conhecer as fotos do autor alemão, também fora suscitado a partir da temática dos trabalhos reunidos como: Lugares, Estranhos e Quietos. Estes eram contextos de certa forma conhecidos para a mulher que ela se tornou, aos 35 anos, descasada, sem filhos, e que já havia viajado por muitas cidades, em diferentes países. Sempre em busca de seu lugar próprio. De sua verdadeira vocação. Nesta trajetória, por vezes, ela pôde experimentar momentos de quietude e de solidão, permeados por conflitos e estranhamentos.
É verdade que, para Clarissa, o contato com as várias manifestações artísticas, de uma maneira geral, delineava um certo modo de estar no mundo. Por muito tempo, ela colheu, do mosaico cultural mundial, diferentes conhecimentos que a ajudaram na consolidação de seu caráter e na revelação de seu mundo interior. Por intermédio da expressão do artista, foi possível legitimar a sua autoexpressão e a sua consequente visão de mundo.
Sua ida ao MASP, naquela tarde, ainda fazia parte deste cotidiano. Era uma espécie de ritual que a fazia se sentir viva. E que a inspirava para a vida.
Ao percorrer as poucas salas da mostra e ao contemplar as imagens, Clarissa reconheceu na predileção do autor por paisagens desertas, desabitadas e vazias, uma intencionalidade. Como se Wenders, propositadamente, almejasse registrar uma imagem capaz de capturar uma atmosfera muito peculiar da espera, da expectativa. Ela o imaginava com a câmera nas mãos, ansioso, aguardando o momento ideal para representar o nada, a ausência, o vazio. E, para ela, havia uma ressonância destas cenas em sua própria vida pessoal, que em muitos momentos esteve à deriva e que, ultimamente, clamava por um momento de pausa, para que algo novo pudesse emergir.
Ao mesmo tempo, as fotos também buscavam representar o estranho, o inusitado e se esgueiravam por caminhos por vezes pouco usuais, espaços completamente desertos, inabitados, ou à espera de uma ocupação. Para Clarissa, na medida em que admirava as fotos, muitas delas em grandes dimensões assemelhando-se a quadros, ela pôde vislumbrar a síntese por traz da lente do artista. Uma comunhão capaz de representar o profundo silêncio existente no interior de certos lugares, por ora de natureza bizarra; por vezes quietos em decorrência da ausência de vestígios da civilização contemporânea humana e, em algumas ocasiões, localizados no ínterim destas duas condições.
Foi, seguindo os seus instintos mais primitivos e possivelmente o seu imaginário, que ela se posicionou diante de uma foto que retratava uma região de moradias populares da Armênia. O elemento central da imagem era uma imensa roda-gigante, notadamente inoperante e abandonada em uma área extensa e vazia. De um ângulo da foto, avistava-se o enorme brinquedo. De outro, alguns prédios e casas sem a presença de pessoas. Inevitavelmente, ela passou a conjeturar sobre as várias situações inerentes a esta cena. Que lugar seria este? A região teria sido devastada por uma guerra? Há quanto tempo o brinquedo teria sido desativado? Qual o impacto da ausência da diversão para a população?
Imersa nestes pensamentos inquietantes, ela seguiu o caminho de volta para casa, sentindo-se levemente excitada por construir um significado e um possível desfecho para aquele cenário ainda inconcluso em sua mente. Em sua trajetória, ela passou por esquinas, atravessou cruzamentos e por vezes até esbarrou em pessoas, porém nada a resgatava de seu mundo interior mergulhado em fantasias e especulações.
Deteve-se em imaginar a magnitude da perda para os habitantes daquela região. Outrora alegres e festivos. Agora, pairando sobre eles uma atmosfera de destruição, de abandono e de tristeza. E a roda-gigante deteriorada simbolizaria toda a incapacidade de reação dos homens, mulheres e crianças daquela vizinhança, frente ao medo, à incerteza, a algo extremamente ameaçador. A impossibilidade da diversão seria uma conseqüência direta da resignação daquelas pessoas. Como se o direito à felicidade lhes tivesse sido arrancado precocemente. Como uma plantinha ao ser colhida antes do amadurecimento. Como abrir um botão de rosa com os próprios dedos. E, desta forma, os habitantes daquela região longínqua seriam incapazes de reconhecer neles próprios uma fonte de felicidade.
Neste limiar, Clarissa experimentou um lampejo de sua infância. Muito próxima de sua casa, também existiu uma roda-gigante, que um dia fez parte de um modesto parque de diversões. O extenso terreno também fora ocupado, em algumas oportunidades, por um circo. Às vezes, tornava-se baldio servindo como pasto para cavalos dos carroceiros. A imagem da enorme roda-gigante era algo familiar para ela. Provavelmente, apenas neste momento, ela pôde se aproximar da realidade daquele povo da cidadezinha da Armênia. Talvez, somente agora ela conseguisse sentir os cheiros, ouvir os sons e visualizar as cores e luzes tão características de um parque de diversões. E ela também conseguiu reconhecer e sentir a reverberação mais íntima da perda de um parque de diversões. E, então, Clarissa novamente sentiu a solidão tão própria deste imenso silêncio inescrutável que caracteriza o abandono e o desamparo.
De uma maneira instintiva, livre e muito libertadora, Clarissa respirou longa e profundamente e decidiu que, no dia seguinte, ela buscaria uma nova exposição. Talvez desta vez, procurasse se entregar à contemplação de quadros de Madonas. E como se fosse uma nova oportunidade, encontraria nos símbolos, nos ícones, nas cores, no indizível, um alimento para a sua alma. Há muito tempo, ávida por um contorno e prenhe de uma completude. E continuaria a sua jornada em busca de si mesma.
Ao observar a fotografia na exposição, Clarissa depara com o seu vazio interior, com a sua roda-gigante esvaziada e esquecida há tempos. E, numa respiração longa e profunda, permite, enfim, que a roda-gigante de sua infância volte a girar, resgatando brilhos de criança em direção a outros arco-íris futuros...
ResponderExcluirLindo texto...
ResponderExcluirParabéns.
Querida!
ResponderExcluirImpressionante a intensidade das descobertas, do valor e do sabor da vida que experimentas a cada olhar sobre o mundo das visões, dos sons...
Cada lugar vazio onde havia morada para a angústia e o sentimento de estar perdida, tem encontrado um caminho de auto-descoberta, de compartilhar, relacionar ao estar com pessoas desconhecidas que são estranhas e ao mesmo tempo intímas pela identificação desta particularidade que é a descoberta de nós mesmas. Digo no feminino, pois este é um caminho muito necessário e prazeroso para as mulheres. Obrigada por nos ajudar a sair do lugar comum do dia a dia. Beijos. Cris.