segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A ausência da palavra


Qual o destino daquilo que não foi falado? Para onde vai o não-verbalizado, o não-expressado?
Não pretendo, aqui, enveredar pelos caminhos da psicologia - temática na qual não sou especialista -, mas reconheço o poder do inconsciente, dos arquétipos e da riqueza psíquica dos sonhos, como sendo gigantescos receptáculos de nossas naturezas mais íntimas. Por outro lado, tampouco, gostaria de resvalar no compêndio da auto-ajuda, tão difundida; ou me deter nos meandros da medicina energética, e discutir sobre a força das afirmações, ou sobre os campos vibracionais que se instituem a partir das emoções reprimidas.
Prefiro, na verdade, inquirir sobre qual seria este lugar a que se destina toda e qualquer palavra não dita. Sem pretensões teóricas de qualquer natureza, portanto, ouso especular sobre a existência de espaços internos e externos capazes de abrigar as declarações não proclamadas.
É sensato afirmar que as palavras denotam ou reúnem em si mesmas emoções e sentimentos. Porém, há uma propriedade intransferível e particular de cada vocábulo. Algo inerente ao seu caráter primevo e que tem a mesma força e a beleza de um símbolo, ou de um ícone. E estes subsistem há séculos, por neles estar contida a qualidade da imortalidade e da atemporalidade, o que predispõem ao desenvolvimento de uma capacidade intrínseca de transcender a situação ou o contexto em que foram constituídos. Há símbolos que permanecem e nunca deixarão de existir.
Para mim, o mesmo ocorreria com as palavras. E, talvez neste momento, eu possa retomar minha indagação inicial. Percebo que aquilo que não foi dito adquire uma forma e um contorno, naturalmente não palpáveis, além de conquistar uma vida própria ao apresentar uma pulsação. Como se fosse uma entidade. Sendo algo não revelado, por afinidade, aproxima-se da atmosfera do oculto, do mistério e do segredo. E porque não dizer do tabu. Todos estes temas também integram, de forma relevante, as diferentes civilizações. Mas o que falar sobre as relações humanas? Como o discurso suprimido, ou a omissão consciente repercute sobre vida?
Como exemplos contundentes, para mim, afirmaria, em primeiro lugar, que durante a segunda guerra mundial, um enorme SIM pairava sobre as cidades alemãs e adjacentes, nas quais foram aprisionados os judeus em campos de concentração. Em outra conjuntura, o prolongado encarceramento de Nelson Mandela, na África do Sul, ressoou um inabalável NÃO ao regime do Apartheid. Os desfechos destes dois momentos históricos cruciais foram radicalmente diferentes. No entanto, deles podemos inferir o potencial das palavras que não foram pronunciadas.

domingo, 28 de novembro de 2010

O desafio da singularidade


Descobrir a origem primitiva de uma palavra...
Como pode ser um feito especial. E, a partir de um primeiro significado, buscar retomar o percurso que o vocábulo perpetrou ao longo do tempo e de sua história. A palavra pode ter se originado em outra cultura ou civilização e, sorrateira ou abruptamente, despertar em outro lugar, em um novo contexto e até sob um novo significado. Há que se levar em conta a intervenção do humano, que se apropria de um termo e lhe confere um determinado status. Há também que se observar o seu tempo de existência. Existem palavras que resistem ao tempo, mas à custa de uma mutação em seu sentido inicial. Há aquelas que, por serem fiéis à sua definição original, caem em desuso frente a uma avalanche de novas palavras que se sobrepõem por força dos apelos da mídia, da prevalência de novos modelos comportamentais, modismos e afins.
Li um artigo “O DNA da língua”, de Ruy Castro, na Folha de São Paulo de domingo, 28 de novembro de 2010, que me levou a fazer esta breve reflexão. O talentoso escritor nos sugere a leitura, de forma apreciativa (como se estivéssemos diante de um romance) de dois novos dicionários da língua portuguesa recém-lançados, um etimológico e outro de expressões populares. De antemão, já encomendei os meus exemplares, cativada pela rara oportunidade de ampliar meus conhecimentos sobre as palavras, sob uma ótica investigativa (que pode vir a se aproximar de um tema “noir”), ou de acordo com uma visão arqueológica, antropológica, ou quem sabe até de uma forma mais fantasiosa, como se fosse um típico contos de fadas.
E continuo a ponderar sobre esta questão. Querer estudar a origem das palavras pode ser algo prazeroso e nos conduzir a um processo de aprofundamento sobre conteúdos relativos àquilo que se pretende expressar. Talvez o caminho seja o de transformar o uso da linguagem em uma real forma de autoexpressão, e não um simples ato mecânico de repetições de palavras e fórmulas desgastadas, porém aceitas e reconhecidas pelas pessoas, pelo grupo de convívio, pela sociedade. E vale dizer que acredito que a intenção, por trás desta nova ação frente ao discurso, à fala propriamente dita, deve, a meu ver, revelar uma singularidade, uma distinção muito pessoal. Isto significa buscar um sentido verdadeiro para aquilo que se pretende dizer, de forma cuidadosa, sem estereótipos, algo muito próprio e característico de cada um. E, em um tempo em que ser autêntico implica um desafio, vale a pena correr o risco de resgatar a sua essência, a sua própria origem etimológica.
Para quem se interessou pelo artigo de Ruy Castro e pelos dois livros, seguem as dicas:
Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, Lexikon/Faperj.
Dicionário de Expressões Populares da Língua Portuguesa, de João Gomes da Silveira, WMF Martins Fontes.

sábado, 20 de novembro de 2010

Uma roda-gigante

foto: Wim Wenders

Pude visitar a exposição de fotos do cineasta alemão Wim Wenders, em cartaz no Masp, em São Paulo, e para mim foi tão significativa que tive o desejo de escrever um conto sob sua inspiração. Ao longo do processo de escrita, pude experimentar uma importante revelação, algo inédito para mim. Abaixo, transcrevo o conto.

Foi em uma tarde cinzenta de domingo que Clarissa decidiu ir ao Museu de Arte de São Paulo, para visitar a exposição de fotos do cineasta Wim Wenders. Ela não era uma exímia conhecedora de suas obras, mas havia assistido aos seus filmes Paris, Texas e Asas do Desejo e destes ainda mantinha, em sua memória, algumas reminiscências.
Desde o período em que cursava a faculdade de jornalismo, seu interesse pessoal pelas artes visuais sempre esteve voltado, particularmente, para a pintura, o que tornava menos usual o seu contato com mostras fotográficas. Mas, ao se deparar com uma cena apresentada em uma fotografia, Clarissa certamente buscaria vivenciar o instante captado pelo olhar do fotógrafo. E ela ousaria ir além. Ela se sentiria incitada a desnudar a intenção do profissional, como se ela pudesse desvendar o mistério que revestiria a imagem. E isto a fascinava.
Seu entusiasmo, por conhecer as fotos do autor alemão, também fora suscitado a partir da temática dos trabalhos reunidos como: Lugares, Estranhos e Quietos. Estes eram contextos de certa forma conhecidos para a mulher que ela se tornou, aos 35 anos, descasada, sem filhos, e que já havia viajado por muitas cidades, em diferentes países. Sempre em busca de seu lugar próprio. De sua verdadeira vocação. Nesta trajetória, por vezes, ela pôde experimentar momentos de quietude e de solidão, permeados por conflitos e estranhamentos.
É verdade que, para Clarissa, o contato com as várias manifestações artísticas, de uma maneira geral, delineava um certo modo de estar no mundo. Por muito tempo, ela colheu, do mosaico cultural mundial, diferentes conhecimentos que a ajudaram na consolidação de seu caráter e na revelação de seu mundo interior. Por intermédio da expressão do artista, foi possível legitimar a sua autoexpressão e a sua consequente visão de mundo.
Sua ida ao MASP, naquela tarde, ainda fazia parte deste cotidiano. Era uma espécie de ritual que a fazia se sentir viva. E que a inspirava para a vida.
Ao percorrer as poucas salas da mostra e ao contemplar as imagens, Clarissa reconheceu na predileção do autor por paisagens desertas, desabitadas e vazias, uma intencionalidade. Como se Wenders, propositadamente, almejasse registrar uma imagem capaz de capturar uma atmosfera muito peculiar da espera, da expectativa. Ela o imaginava com a câmera nas mãos, ansioso, aguardando o momento ideal para representar o nada, a ausência, o vazio. E, para ela, havia uma ressonância destas cenas em sua própria vida pessoal, que em muitos momentos esteve à deriva e que, ultimamente, clamava por um momento de pausa, para que algo novo pudesse emergir.
Ao mesmo tempo, as fotos também buscavam representar o estranho, o inusitado e se esgueiravam por caminhos por vezes pouco usuais, espaços completamente desertos, inabitados, ou à espera de uma ocupação. Para Clarissa, na medida em que admirava as fotos, muitas delas em grandes dimensões assemelhando-se a quadros, ela pôde vislumbrar a síntese por traz da lente do artista. Uma comunhão capaz de representar o profundo silêncio existente no interior de certos lugares, por ora de natureza bizarra; por vezes quietos em decorrência da ausência de vestígios da civilização contemporânea humana e, em algumas ocasiões, localizados no ínterim destas duas condições.
Foi, seguindo os seus instintos mais primitivos e possivelmente o seu imaginário, que ela se posicionou diante de uma foto que retratava uma região de moradias populares da Armênia. O elemento central da imagem era uma imensa roda-gigante, notadamente inoperante e abandonada em uma área extensa e vazia. De um ângulo da foto, avistava-se o enorme brinquedo. De outro, alguns prédios e casas sem a presença de pessoas. Inevitavelmente, ela passou a conjeturar sobre as várias situações inerentes a esta cena. Que lugar seria este? A região teria sido devastada por uma guerra? Há quanto tempo o brinquedo teria sido desativado? Qual o impacto da ausência da diversão para a população?
Imersa nestes pensamentos inquietantes, ela seguiu o caminho de volta para casa, sentindo-se levemente excitada por construir um significado e um possível desfecho para aquele cenário ainda inconcluso em sua mente. Em sua trajetória, ela passou por esquinas, atravessou cruzamentos e por vezes até esbarrou em pessoas, porém nada a resgatava de seu mundo interior mergulhado em fantasias e especulações.
Deteve-se em imaginar a magnitude da perda para os habitantes daquela região. Outrora alegres e festivos. Agora, pairando sobre eles uma atmosfera de destruição, de abandono e de tristeza. E a roda-gigante deteriorada simbolizaria toda a incapacidade de reação dos homens, mulheres e crianças daquela vizinhança, frente ao medo, à incerteza, a algo extremamente ameaçador. A impossibilidade da diversão seria uma conseqüência direta da resignação daquelas pessoas. Como se o direito à felicidade lhes tivesse sido arrancado precocemente. Como uma plantinha ao ser colhida antes do amadurecimento. Como abrir um botão de rosa com os próprios dedos. E, desta forma, os habitantes daquela região longínqua seriam incapazes de reconhecer neles próprios uma fonte de felicidade.
Neste limiar, Clarissa experimentou um lampejo de sua infância. Muito próxima de sua casa, também existiu uma roda-gigante, que um dia fez parte de um modesto parque de diversões. O extenso terreno também fora ocupado, em algumas oportunidades, por um circo. Às vezes, tornava-se baldio servindo como pasto para cavalos dos carroceiros. A imagem da enorme roda-gigante era algo familiar para ela. Provavelmente, apenas neste momento, ela pôde se aproximar da realidade daquele povo da cidadezinha da Armênia. Talvez, somente agora ela conseguisse sentir os cheiros, ouvir os sons e visualizar as cores e luzes tão características de um parque de diversões. E ela também conseguiu reconhecer e sentir a reverberação mais íntima da perda de um parque de diversões. E, então, Clarissa novamente sentiu a solidão tão própria deste imenso silêncio inescrutável que caracteriza o abandono e o desamparo.
De uma maneira instintiva, livre e muito libertadora, Clarissa respirou longa e profundamente e decidiu que, no dia seguinte, ela buscaria uma nova exposição. Talvez desta vez, procurasse se entregar à contemplação de quadros de Madonas. E como se fosse uma nova oportunidade, encontraria nos símbolos, nos ícones, nas cores, no indizível, um alimento para a sua alma. Há muito tempo, ávida por um contorno e prenhe de uma completude. E continuaria a sua jornada em busca de si mesma.

sábado, 13 de novembro de 2010

Para alimentar a alma

"Le don de Pacha Mama (de la Madre Terre), violence et pillage (Huaman Poma de Allala, Velazquez, Goya, Picasso)", acrílico sobre tela
Herman-Braun-Vega, 2010

Se você aprecia obras de arte, reserve um espaço de tempo em sua agenda para ir à exposição do artista peruano Herman-Braun-Vega, no Memorial da América Latina, em São Paulo. É imperdível.
É uma mostra pequena, em uma grande galeria, o que lhe permitirá estudar com afinco cada quadro. Aliás, sinto que esta seja a proposta do pintor, ele mesmo, um grande estudioso das obras dos espanhóis Velazquez, Goya, El Greco, Picasso e também dos principais autores dos “ismos”, movimentos artísticos do início do século 20. Dentre eles, Monet, Manet, Cézanne, Van Gogh, Matisse entre outros.
Fui instigada a ir à mostra, em primeiro lugar, pela minha verdadeira paixão por pintores espanhóis. E, igualmente, por saber de antemão que o autor peruano desenvolve uma linha de trabalho que procura localizar pontos de confluência entre diferentes artistas, suas obras amplamente conhecidas, e temas político-sociais contemporâneos, quer sejam latino-americanos ou mundiais.
Ao conhecer de perto suas obras (inéditas para mim), pude perceber a grandiosidade do seu feito. O artista vai muito além de uma simples releitura de obras consagradas. Ele nos propõe uma reflexão viva e intensa sobre diferentes temas, reunidos em um mesmo quadro, sob a inspiração de vários mestres da pintura e mediados pela visão conceitual do próprio pintor e também do expectador, você. E a temática por ele escolhida é bastante engajada e contempla pontos como a religiosidade, a discriminação social, a violência, a diversidade cultural, o poder político, a manifestação artística e outros que você puder detectar.
Se você se interessou em visitar a exposição, aproveite para visualizar o belíssimo catálogo da mostra, à disposição no site do pintor. Desfrute também da entrevista, por ele concedida à curadoria da mostra, e conheça um pouco melhor a trajetória pessoal de Braun-Vega, seus pensamentos e suas impressões.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O risco de florescer

Durante o show musical de abertura da Copa do Mundo de Futebol da África do Sul, pude ter um primeiro contato com a cantora e compositora Alicia Keys. Confesso que, naquela oportunidade, fiquei muito mais deslumbrada com as apresentações folclóricas, de danças e de costumes tribais africanas. Porém, algo ficou em meu imaginário. Recentemente, em uma visita à FNAC, deparei-me com o último álbum da artista. O tema do cd seduziu-me imediatamente e me propus a ouvi-lo. Após a audição, não resisti e o comprei. Seu título: The Element of Freedom. Tornou-se o meu cd favorito, atualmente. Nele, há uma mescla de ritmos que te convidam a dançar, a cantar e a escutar em alto volume e, por vezes, a simplesmente deixar-se levar pela letra ou melodia. Alicia cria as próprias composições e, ao cantá-las, consegue transmitir toda a sua autenticidade, plena de referências ao feminino, e de alusões à força e à beleza intrínsecas à feminilidade.
Se você não resistir, como eu, e quiser ouvir o cd antes do término deste post, acesse: http://www.aliciakeys.com/us/home
Mas, sem perder as minhas características investigativas e racionais, bem pessoais, também fui fisgada pela citação que abre o cd. De alguma maneira, já conhecia a frase. Não pude reconhecer a referência, tampouco o nome do autor. Na versão em inglês, a cantora diz: “And the day came when the risk to remain tight in a bud was more painful than the risk it took to bloom”. Na minha tradução livre: E chegou o dia em que o risco de permanecer apertada em um broto (botão) era mais doloroso do que o risco necessário para florescer. Significativo, não é mesmo? Não dá para não meditar a respeito. Senti uma ressonância forte dentro de mim. E ainda estou fazendo elaborações muito íntimas sobre este pensamento. Para mim, tem sido uma experiência simplesmente empolgante. Talvez, neste aspecto, resida a familiaridade, o espelhamento. Pura sincronicidade.
A partir de minhas pesquisas, descobri também que a frase compõe o subtítulo de um livro chamado “Journey to Wholeness”, da californiana Barbara Marie Brewster, infelizmente, não publicado no Brasil. Ele retrata a história real da autora que, ao descobrir ser portadora de esclerose múltipla (uma doença grave e degenerativa, muitas vezes letal), decide desabrochar e não mais ficar apertadinha em um broto. Ela optou pela expansão. Isto foi em 1984. Desde então, ela percorreu o mundo. Tornou-se uma “clown”, sendo membro do grupo Patch Adams; trabalhou como voluntária em programas para o atendimento de crianças portadoras de HIV na África; é co-fundadora de uma organização que acolhe refugiados; é escritora; atriz, e se intitula também uma sobrevivente.
Vale acessar ao seu site: http://www.barbarabrewster.com/
As minhas buscas não param por aqui. Também encontrei referências à Anaïs Nin, a controvertida poeta, como sendo autora desta frase. Porém, os resultados ainda são incipientes. Quem sabe, em outra oportunidade, eu possa trazer mais “elementos de liberdade”.
foto de Reislanes in: http://digiforum.com.br/portal/