sábado, 25 de dezembro de 2010

Pequena felicidade


Concluí, hoje, a leitura do livro de contos: O tempo envelhece depressa, do autor italiano Antonio Tabucchi, e gostei muitíssimo do que li. É a primeira vez que leio algo dele e me senti entusiasmada pelo estilo de sua escrita, muito particular e intencionalmente apropriada no que diz respeito ao tema do livro: o tempo. Por vezes, a descriçao das cenas, dos diálogos, ou dos pensamentos fluem sem interrupção. Sem uma pausa, sem a necessidade de um novo parágrafo, por exemplo. Em outro momento, por intermédio de uma breve e singela descriçao de um instante, é possível captar toda a potencialidade de uma imagem, de uma ação, graças a uma síntese de centenas de palavras. E aí reside toda a magia do processo çriativo da escrita, que ora requer um burilamento dos vocábulos, ora "brinca-se" com os próprios recursos que os fundamentos da literatura nos oferecem.
Particularmente, encantei-me com o último conto denominado Contratempo. O título, em si mesmo, já dá pistas sobre aquilo que escritor pretende refletir, ou seja, o tema da atemporalidade, nas dimensões do passado, presente e futuro. Na concisa narrativa, surgem vários elementos que irão fomentar esta discussão em torno do tempo. E, em minha opinião, considero que o autor italiano adote um caráter de suspense, ao elencar memórias, lembranças, fotos etc. Além de reminiscências de um passado, que por vezes mescla-se a um futuro, em situações que remetem a um dejá vu, provocando o leitor a reler o conto várias vezes para melhor comprendê-lo.
E, foi diante desta miríade de situações e paisagens, que encontrei a descrição de uma bela cena pela qual fiquei verdadeiramente impactada. O personagem do conto desembarca em Creta, na Grécia, aluga um automóvel e decide seguir o seu percurso por uma estrada à beira-mar. Diminutas e precisas são as informações. Outrora, esta regiáo grega fora dominada pelos turcos e em outra época pelos venezianos. Assim, este homem decide parar por um instante em um bar e pedir um café turco e um sorvete de limão. E a este espaço de tempo destinado ao seu deleite, a um não fazer nada, a desfrutar de um momento que reúne todo o manancial histórico quase arqueológico de uma civilização, ele chama de pequena felicidade. Daí todo o meu encantamento e êxtase. Estar disponível e aberta para vivenciar e presentificar de forma integral e verdadeira um instante. Li e reli várias vezes o conto, mas confesso que detive-me demoradamente neste trecho da estória com a intenção de "degustar", apreciar itensamente aquilo que foi escrito. Como se desta forma eu pudesse ficar impregnada desta passagem...
Amanhã, regressarei a São Paulo. Aqui, em Águas de Lindóia, felizmente, pude viver pequenas felicidades. A imagem que ilustra este post era o meu cenário particular ao ler este livro.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Viver um instante

Com a proximidade do término de um ano, em termos cronológicos, paira no ar uma atmosfera de "fechado para balanço".
Crio suposições acerca de toda a carga de pensamentos que se avolumam em torno de tudo aquilo que foi feito ou deixado de fazer. Os pesares, os arrependimentos e os esquecimentos. As conquistas, os ganhos e os progressos. As dúvidas, as inquietações e as perdas. Os experimentos, as inovações e as mudanças. Todo este pensar e refletir coletivos de alguma maneira, a meu ver, ganha um formato e se corporifica, tornando-se uma entidade também grupal, tamanha é a pressão do todo para que vibremos nesta direção. Explico-me melhor.
Recebemos mensagens originárias de diferentes remetentes: amigos, bancos, lojas etc. No entanto, os conteúdos muito se assemelham. Há uma tendência atual de minimizar os sofrimentos e as mazelas, que porventura tenham sido vivenciados, e sobrevalorizar as aquisições futuras. Depositando-se, assim, uma exagerada expectativa no amanhã. Como uma gangorra, ora somos convidados a fazer o "check list"do ano que se esvai; ora somos incitados a elaborar uma lista de projetos vindouros. E se conjecturarmos que todas as pessoas ao nosso redor também estejam sendo arrastadas por esta oscilação, perdemos a oportunidade de seguir o fluxo natural da vida, acabando por nos perder no mar da inquietação e dos desejos coletivos. Deixamos, talvez, de apreciar a beleza de uma flor disposta em um arranjo de uma mesa natalina. Acabamos por não estar atentos em uma conversa informal com um colega de trabalho em uma festa da empresa. Evitamos nos emocionar no último dia de aula de nosso filho. Renunciamos, enfim, a todas as chances de estarmos presentes e de viver cada instante de nossas vidas, já que as algemas do passado e a sedução do futuro parecem muito mais convidativas.

Sobre o feminino

Cá estou, em Águas de Lindóia, lugar para aonde migramos sazonalmente, em busca de sossego e bem-estar. Como não poderia ser diferente, vim acompanhada de meus livros. Escolhi exemplares apropriados para períodos de férias, aqueles que contemplam conteúdos menos densos e proporcionam uma leitura mais ligeira. O primeiro deles: O clube do tricô, da canadense muito norte-americana Kate Jacobs, escolhi por acaso em uma visita despretensiosa à livraria da Vila da Fradique Coutinho. Não sei se o mesmo acontece com você, mas para mim, há livros a serem comprados em livrarias específicas. Na Cultura, por exemplo, vou sempre em busca de algo pré-determinado, previamente pensado e escolhido. Na Saraiva e na Livraria da Vila, as compras são de caráter aleatório, mais descompromissado. O que pode reservar boas surpresas. O mesmo pode-se dizer da Fnac.
Em dois dias, pude ler as 439 páginas do romance e mergulhar fundo na história de várias mulheres, de diferentes gerações e distintas percepções de mundo. Todas, de alguma forma, estavam entrelaçadas pelas tramas de um trabalho de tricô. Como se assemelhando à grande teia da vida. É interessante perceber como as características do feminino se desdobram e se replicam em várias culturas e sociedades. Há algo intrinsecamente típico da feminilidade que se mantém vivo e que pode ser reconhecido e perpetrado ao longo dos tempos. Mas falo de algo muito íntimo e pessoal. Temas muito particulares e próprios que se autosustentam e sobrevivem às revoluções históricas, às impactantes mudanças culturais, aos modismos e às tendências. E seus rastros podem ser seguidos em manifestações artísticas, principalmente aquelas produzidas pelos próprios punhos de mulheres. Feminismo à parte, trato aqui da atitude verdadeira de entrega e visceralidade que um livro, uma escultura ou uma pintura exigem.
E, para mim, as grandes obras de arte, as imortais, têm em si esta vocação (além de um destino), a de convidar a humanidade a sorver um pouco de sua própria fonte de beleza, sabedoria, espiritualidade e autoconhecimento.
O livro O clube do tricô, não é uma obra-prima. Na verdade, aproxima-se mais de um bestseller; no entanto, possibilita bons momentos de reflexão. Vale ler.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Além das fronteiras


Impressionou-me enormemente o filme argentino “Abutres”. O tema é bastante inóspito e raro nos cinemas. Trata-se de um olhar particular sobre a vida das pessoas envolvidas no lucrativo negócio de processos, movidos contra as seguradoras de automóveis, em decorrência de acidentes com vítimas. Há toda sorte de situações. Assim como diferentes são os personagens.
No entanto, despertou a minha atenção a atmosfera angustiante, sem sentido e sem rumo presente na vida das pessoas. Muitas delas se assemelhando a zumbis, passando pelas situações sem esboçar sentimentos, reativamente ou "sonambulicamente".
Por curiosidade, busquei o termo abutre na Wikipédia e resgatei uma informação esquecida por mim. Sabidamente, abutres são aves de grande porte “que se alimentam de restos orgânicos (plantas e animais mortos)”, porém vale frisar que eles os reciclam e os retornam “à cadeia alimentar para serem reaproveitados pelos demais organismos vivos”. Assim, é preciso observar que os abutres fazem o “trabalho sujo” para manterem os demais seres vivos.
Ao assistir ao filme, a sensação que tive era a de me deparar com um mundo paralelo, muito próximo da criminalidade, da marginalidade e da exclusão. Porém, ao distanciar-me do tema em si, que permeia o filme, é possível resgatar as pessoas e suas histórias pessoais. Na verdade, o que o filme revela é a realidade por trás dos múltiplos mundos simultâneos existentes em nossa sociedade e sobre os quais não nos damos conta, não temos referências ou, muito provavelmente, buscamos rejeitar ocultando-os.
Questiono-me, então, sobre qual o papel que desempenhamos na vida. E sobre qual é a nossa percepção sobre tudo aquilo que há ao nosso redor. E concluo que seja imprescindível ampliar a nossa visão de mundo para além dos muros de nossos jardins. Para além das fronteiras de nosso conhecimento.
Não perca o filme.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Uma pausa


Há dias que venho me sentindo verdadeiramente embotada e não consigo me dedicar à prazerosa atividade de escrita para o meu blog. Várias poderiam ser as justificativas para este acontecimento. As festividades de final de ano que nos impõem um ritmo frenético de comemorações e despedidas (por vezes intermináveis). Amigos e familiares ansiosos por encontros apressados com o pretenso propósito de celebrar o ano que está findando. E se todas estas situações se potencializam na cidade, há que se refletir também sobre o caótico trânsito a que devemos nos submeter.
Mesmo em meio a este turbilhão de eventos, encontrei um tempinho para ir assistir ao filme documentário José e Pilar, que retrata um período recente da vida do escritor português José Saramago. E fiquei muito surpresa. Eu não tinha informações prévias sobre sua esposa Pilar e fiquei estarrecida diante de sua postura sempre autoritária, manipuladora e arrogante. No filme, Saramago já tem um pouco mais de oitenta anos e, por determinação de sua esposa, vive cotidianamente um périplo: percorrendo aeroportos, concedendo entrevistas, dando autógrafos, participando de premiações. Raros são os momentos em que ele pode sentar-se diante de seu computador e escrever.
Somente quando adoece, o autor retoma o seu contato com a escrita. Como um refúgio, um oásis. Um grande momento de libertação. Um exercício de si mesmo totalmente desvinculado de ações práticas, corriqueiras e dos tão enfadonhos “compromissos”. E, felizmente, Saramago consegue concluir seu livro “A viagem do Elefante”, de cunho autobiográfico e sempre embasado em grandes alegorias e epopéias, bem ao estilo do escritor luso.
Ainda não li o livro, mas já o incluí em minha lista. Porém, ainda me pergunto por que Saramago sucumbiu a esta rotina avassaladora. E por que eu, também, fui arrastada por esta corrente.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Uma vida, uma mentira


Por que as pessoas insistem em repetir fórmulas e modelos plagiados de trajetórias de terceiros, sem nenhum significado subjetivo e, obviamente, descolados de sua própria vida pessoal? Falta de autoconfiança? Sentimento de menos-valia? Total desconhecimento de sua verdadeira natureza?
Ao elencar estas possibilidades, pude sentir e visualizar a figura de uma espiral, sem grandes platôs, ora se assemelhando a um tufão ora se configurando em uma queda de um precipício. Talvez sejam estas as emoções vividas por aquele que está ausente de si mesmo e sucumbido ao outro. Ora falta-lhe o ar, a respiração está mais curta, os níveis de estresse e ansiedade altíssimos. Como um furacão, destrói tudo a seu alcance. Ou então, por outro lado, sente-se deprimido, desfalecido, sem energia. Isolado, em silêncio e com vontade de dormir, apenas. Em queda livre.
Talvez por pura sincronicidade, estas questões estavam muito presentes, dentro de mim, quando fui assistir ao recente filme de Woody Allen: “Você vai conhecer o homem dos seus sonhos”. Para alguns críticos e espectadores, o filme foi considerado um tanto melancólico, e, portanto “negativo”, por apresentar diferentes histórias que convergem para o mesmo núcleo: fracasso, tédio, desesperança, solidão, traição.
Eu, pessoalmente, gostei muito do longa-metragem pela oportunidade que Allen nos oferece de vivenciar as mentiras adotadas por cada personagem e as estratégias, por eles escolhidas, para a manutenção destas condutas. Instaura-se, assim, uma grande ilusão de estar vivo. Como se fosse um bando de espectros ambulantes, porém, voltados para as expectativas do outro e para o outro. E de forma bem humorada e até mesmo ácida (predicados típicos do cineasta), ao longo do filme os personagens podem trocar de atributos e experimentar o tão sonhado “outro lado”. E a conclusão a que cheguei é a de que ainda permanece a sensação de vazio, de incompletude.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Um legado para o futuro


“Cada um representa um pedaço de um agrupamento maior.” Esta frase foi pronunciada, de uma maneira muito emocionada, pela coordenadora da escola em que meu filho cursa o 2º ano do ensino fundamental. E o momento do discurso não poderia ser o mais apropriado: uma apresentação musical das 150 crianças da escola para seus familiares, reunidos em uma singela celebração para eternizar o término de um ciclo, já que, em 2011, os alunos serão reunidos em novas turmas em outra unidade da escola.
Para nós, pais, foi tocante encontrar as crianças sentadinhas nos degraus do pátio, ansiosas pela nossa chegada. Todas estavam vestidas com camisetas estampadas com a foto da produção artística elaborada, em grupo, por cada classe, como se fosse um trabalho de conclusão de curso (uma grata surpresa para nós).
A nova mescla de crianças já sugeria as futuras composições a serem feitas, como diferentes rearranjos e possibilidades. E, foi a partir dessa inédita grande composição, que pude captar a beleza e a importância de um rito de passagem. Cada criança, cada pequeno ser trazia estampado no peito o seu próprio legado. Uma maneira simbólica de representar toda a trajetória vivida por cada um deles.
Aliás, a meu ver, este era o escopo conceitual por trás de toda a iniciativa da escola, já que a apresentação musical encerrou uma manhã de brincadeiras e atividades típicas do período escolar pregresso das crianças. Como se elas pudessem voltar no tempo, entrar em contato com momentos importantes de suas vidas, e de forma serena e amadurecida encerrar um período. Como estes momentos são significativos em nossas vidas! Ter a feliz oportunidade de viver a vida intensamente, etapa por etapa. Concluindo ciclos e abrindo espaços internos para o novo.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A ausência da palavra


Qual o destino daquilo que não foi falado? Para onde vai o não-verbalizado, o não-expressado?
Não pretendo, aqui, enveredar pelos caminhos da psicologia - temática na qual não sou especialista -, mas reconheço o poder do inconsciente, dos arquétipos e da riqueza psíquica dos sonhos, como sendo gigantescos receptáculos de nossas naturezas mais íntimas. Por outro lado, tampouco, gostaria de resvalar no compêndio da auto-ajuda, tão difundida; ou me deter nos meandros da medicina energética, e discutir sobre a força das afirmações, ou sobre os campos vibracionais que se instituem a partir das emoções reprimidas.
Prefiro, na verdade, inquirir sobre qual seria este lugar a que se destina toda e qualquer palavra não dita. Sem pretensões teóricas de qualquer natureza, portanto, ouso especular sobre a existência de espaços internos e externos capazes de abrigar as declarações não proclamadas.
É sensato afirmar que as palavras denotam ou reúnem em si mesmas emoções e sentimentos. Porém, há uma propriedade intransferível e particular de cada vocábulo. Algo inerente ao seu caráter primevo e que tem a mesma força e a beleza de um símbolo, ou de um ícone. E estes subsistem há séculos, por neles estar contida a qualidade da imortalidade e da atemporalidade, o que predispõem ao desenvolvimento de uma capacidade intrínseca de transcender a situação ou o contexto em que foram constituídos. Há símbolos que permanecem e nunca deixarão de existir.
Para mim, o mesmo ocorreria com as palavras. E, talvez neste momento, eu possa retomar minha indagação inicial. Percebo que aquilo que não foi dito adquire uma forma e um contorno, naturalmente não palpáveis, além de conquistar uma vida própria ao apresentar uma pulsação. Como se fosse uma entidade. Sendo algo não revelado, por afinidade, aproxima-se da atmosfera do oculto, do mistério e do segredo. E porque não dizer do tabu. Todos estes temas também integram, de forma relevante, as diferentes civilizações. Mas o que falar sobre as relações humanas? Como o discurso suprimido, ou a omissão consciente repercute sobre vida?
Como exemplos contundentes, para mim, afirmaria, em primeiro lugar, que durante a segunda guerra mundial, um enorme SIM pairava sobre as cidades alemãs e adjacentes, nas quais foram aprisionados os judeus em campos de concentração. Em outra conjuntura, o prolongado encarceramento de Nelson Mandela, na África do Sul, ressoou um inabalável NÃO ao regime do Apartheid. Os desfechos destes dois momentos históricos cruciais foram radicalmente diferentes. No entanto, deles podemos inferir o potencial das palavras que não foram pronunciadas.

domingo, 28 de novembro de 2010

O desafio da singularidade


Descobrir a origem primitiva de uma palavra...
Como pode ser um feito especial. E, a partir de um primeiro significado, buscar retomar o percurso que o vocábulo perpetrou ao longo do tempo e de sua história. A palavra pode ter se originado em outra cultura ou civilização e, sorrateira ou abruptamente, despertar em outro lugar, em um novo contexto e até sob um novo significado. Há que se levar em conta a intervenção do humano, que se apropria de um termo e lhe confere um determinado status. Há também que se observar o seu tempo de existência. Existem palavras que resistem ao tempo, mas à custa de uma mutação em seu sentido inicial. Há aquelas que, por serem fiéis à sua definição original, caem em desuso frente a uma avalanche de novas palavras que se sobrepõem por força dos apelos da mídia, da prevalência de novos modelos comportamentais, modismos e afins.
Li um artigo “O DNA da língua”, de Ruy Castro, na Folha de São Paulo de domingo, 28 de novembro de 2010, que me levou a fazer esta breve reflexão. O talentoso escritor nos sugere a leitura, de forma apreciativa (como se estivéssemos diante de um romance) de dois novos dicionários da língua portuguesa recém-lançados, um etimológico e outro de expressões populares. De antemão, já encomendei os meus exemplares, cativada pela rara oportunidade de ampliar meus conhecimentos sobre as palavras, sob uma ótica investigativa (que pode vir a se aproximar de um tema “noir”), ou de acordo com uma visão arqueológica, antropológica, ou quem sabe até de uma forma mais fantasiosa, como se fosse um típico contos de fadas.
E continuo a ponderar sobre esta questão. Querer estudar a origem das palavras pode ser algo prazeroso e nos conduzir a um processo de aprofundamento sobre conteúdos relativos àquilo que se pretende expressar. Talvez o caminho seja o de transformar o uso da linguagem em uma real forma de autoexpressão, e não um simples ato mecânico de repetições de palavras e fórmulas desgastadas, porém aceitas e reconhecidas pelas pessoas, pelo grupo de convívio, pela sociedade. E vale dizer que acredito que a intenção, por trás desta nova ação frente ao discurso, à fala propriamente dita, deve, a meu ver, revelar uma singularidade, uma distinção muito pessoal. Isto significa buscar um sentido verdadeiro para aquilo que se pretende dizer, de forma cuidadosa, sem estereótipos, algo muito próprio e característico de cada um. E, em um tempo em que ser autêntico implica um desafio, vale a pena correr o risco de resgatar a sua essência, a sua própria origem etimológica.
Para quem se interessou pelo artigo de Ruy Castro e pelos dois livros, seguem as dicas:
Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha, Lexikon/Faperj.
Dicionário de Expressões Populares da Língua Portuguesa, de João Gomes da Silveira, WMF Martins Fontes.

sábado, 20 de novembro de 2010

Uma roda-gigante

foto: Wim Wenders

Pude visitar a exposição de fotos do cineasta alemão Wim Wenders, em cartaz no Masp, em São Paulo, e para mim foi tão significativa que tive o desejo de escrever um conto sob sua inspiração. Ao longo do processo de escrita, pude experimentar uma importante revelação, algo inédito para mim. Abaixo, transcrevo o conto.

Foi em uma tarde cinzenta de domingo que Clarissa decidiu ir ao Museu de Arte de São Paulo, para visitar a exposição de fotos do cineasta Wim Wenders. Ela não era uma exímia conhecedora de suas obras, mas havia assistido aos seus filmes Paris, Texas e Asas do Desejo e destes ainda mantinha, em sua memória, algumas reminiscências.
Desde o período em que cursava a faculdade de jornalismo, seu interesse pessoal pelas artes visuais sempre esteve voltado, particularmente, para a pintura, o que tornava menos usual o seu contato com mostras fotográficas. Mas, ao se deparar com uma cena apresentada em uma fotografia, Clarissa certamente buscaria vivenciar o instante captado pelo olhar do fotógrafo. E ela ousaria ir além. Ela se sentiria incitada a desnudar a intenção do profissional, como se ela pudesse desvendar o mistério que revestiria a imagem. E isto a fascinava.
Seu entusiasmo, por conhecer as fotos do autor alemão, também fora suscitado a partir da temática dos trabalhos reunidos como: Lugares, Estranhos e Quietos. Estes eram contextos de certa forma conhecidos para a mulher que ela se tornou, aos 35 anos, descasada, sem filhos, e que já havia viajado por muitas cidades, em diferentes países. Sempre em busca de seu lugar próprio. De sua verdadeira vocação. Nesta trajetória, por vezes, ela pôde experimentar momentos de quietude e de solidão, permeados por conflitos e estranhamentos.
É verdade que, para Clarissa, o contato com as várias manifestações artísticas, de uma maneira geral, delineava um certo modo de estar no mundo. Por muito tempo, ela colheu, do mosaico cultural mundial, diferentes conhecimentos que a ajudaram na consolidação de seu caráter e na revelação de seu mundo interior. Por intermédio da expressão do artista, foi possível legitimar a sua autoexpressão e a sua consequente visão de mundo.
Sua ida ao MASP, naquela tarde, ainda fazia parte deste cotidiano. Era uma espécie de ritual que a fazia se sentir viva. E que a inspirava para a vida.
Ao percorrer as poucas salas da mostra e ao contemplar as imagens, Clarissa reconheceu na predileção do autor por paisagens desertas, desabitadas e vazias, uma intencionalidade. Como se Wenders, propositadamente, almejasse registrar uma imagem capaz de capturar uma atmosfera muito peculiar da espera, da expectativa. Ela o imaginava com a câmera nas mãos, ansioso, aguardando o momento ideal para representar o nada, a ausência, o vazio. E, para ela, havia uma ressonância destas cenas em sua própria vida pessoal, que em muitos momentos esteve à deriva e que, ultimamente, clamava por um momento de pausa, para que algo novo pudesse emergir.
Ao mesmo tempo, as fotos também buscavam representar o estranho, o inusitado e se esgueiravam por caminhos por vezes pouco usuais, espaços completamente desertos, inabitados, ou à espera de uma ocupação. Para Clarissa, na medida em que admirava as fotos, muitas delas em grandes dimensões assemelhando-se a quadros, ela pôde vislumbrar a síntese por traz da lente do artista. Uma comunhão capaz de representar o profundo silêncio existente no interior de certos lugares, por ora de natureza bizarra; por vezes quietos em decorrência da ausência de vestígios da civilização contemporânea humana e, em algumas ocasiões, localizados no ínterim destas duas condições.
Foi, seguindo os seus instintos mais primitivos e possivelmente o seu imaginário, que ela se posicionou diante de uma foto que retratava uma região de moradias populares da Armênia. O elemento central da imagem era uma imensa roda-gigante, notadamente inoperante e abandonada em uma área extensa e vazia. De um ângulo da foto, avistava-se o enorme brinquedo. De outro, alguns prédios e casas sem a presença de pessoas. Inevitavelmente, ela passou a conjeturar sobre as várias situações inerentes a esta cena. Que lugar seria este? A região teria sido devastada por uma guerra? Há quanto tempo o brinquedo teria sido desativado? Qual o impacto da ausência da diversão para a população?
Imersa nestes pensamentos inquietantes, ela seguiu o caminho de volta para casa, sentindo-se levemente excitada por construir um significado e um possível desfecho para aquele cenário ainda inconcluso em sua mente. Em sua trajetória, ela passou por esquinas, atravessou cruzamentos e por vezes até esbarrou em pessoas, porém nada a resgatava de seu mundo interior mergulhado em fantasias e especulações.
Deteve-se em imaginar a magnitude da perda para os habitantes daquela região. Outrora alegres e festivos. Agora, pairando sobre eles uma atmosfera de destruição, de abandono e de tristeza. E a roda-gigante deteriorada simbolizaria toda a incapacidade de reação dos homens, mulheres e crianças daquela vizinhança, frente ao medo, à incerteza, a algo extremamente ameaçador. A impossibilidade da diversão seria uma conseqüência direta da resignação daquelas pessoas. Como se o direito à felicidade lhes tivesse sido arrancado precocemente. Como uma plantinha ao ser colhida antes do amadurecimento. Como abrir um botão de rosa com os próprios dedos. E, desta forma, os habitantes daquela região longínqua seriam incapazes de reconhecer neles próprios uma fonte de felicidade.
Neste limiar, Clarissa experimentou um lampejo de sua infância. Muito próxima de sua casa, também existiu uma roda-gigante, que um dia fez parte de um modesto parque de diversões. O extenso terreno também fora ocupado, em algumas oportunidades, por um circo. Às vezes, tornava-se baldio servindo como pasto para cavalos dos carroceiros. A imagem da enorme roda-gigante era algo familiar para ela. Provavelmente, apenas neste momento, ela pôde se aproximar da realidade daquele povo da cidadezinha da Armênia. Talvez, somente agora ela conseguisse sentir os cheiros, ouvir os sons e visualizar as cores e luzes tão características de um parque de diversões. E ela também conseguiu reconhecer e sentir a reverberação mais íntima da perda de um parque de diversões. E, então, Clarissa novamente sentiu a solidão tão própria deste imenso silêncio inescrutável que caracteriza o abandono e o desamparo.
De uma maneira instintiva, livre e muito libertadora, Clarissa respirou longa e profundamente e decidiu que, no dia seguinte, ela buscaria uma nova exposição. Talvez desta vez, procurasse se entregar à contemplação de quadros de Madonas. E como se fosse uma nova oportunidade, encontraria nos símbolos, nos ícones, nas cores, no indizível, um alimento para a sua alma. Há muito tempo, ávida por um contorno e prenhe de uma completude. E continuaria a sua jornada em busca de si mesma.

sábado, 13 de novembro de 2010

Para alimentar a alma

"Le don de Pacha Mama (de la Madre Terre), violence et pillage (Huaman Poma de Allala, Velazquez, Goya, Picasso)", acrílico sobre tela
Herman-Braun-Vega, 2010

Se você aprecia obras de arte, reserve um espaço de tempo em sua agenda para ir à exposição do artista peruano Herman-Braun-Vega, no Memorial da América Latina, em São Paulo. É imperdível.
É uma mostra pequena, em uma grande galeria, o que lhe permitirá estudar com afinco cada quadro. Aliás, sinto que esta seja a proposta do pintor, ele mesmo, um grande estudioso das obras dos espanhóis Velazquez, Goya, El Greco, Picasso e também dos principais autores dos “ismos”, movimentos artísticos do início do século 20. Dentre eles, Monet, Manet, Cézanne, Van Gogh, Matisse entre outros.
Fui instigada a ir à mostra, em primeiro lugar, pela minha verdadeira paixão por pintores espanhóis. E, igualmente, por saber de antemão que o autor peruano desenvolve uma linha de trabalho que procura localizar pontos de confluência entre diferentes artistas, suas obras amplamente conhecidas, e temas político-sociais contemporâneos, quer sejam latino-americanos ou mundiais.
Ao conhecer de perto suas obras (inéditas para mim), pude perceber a grandiosidade do seu feito. O artista vai muito além de uma simples releitura de obras consagradas. Ele nos propõe uma reflexão viva e intensa sobre diferentes temas, reunidos em um mesmo quadro, sob a inspiração de vários mestres da pintura e mediados pela visão conceitual do próprio pintor e também do expectador, você. E a temática por ele escolhida é bastante engajada e contempla pontos como a religiosidade, a discriminação social, a violência, a diversidade cultural, o poder político, a manifestação artística e outros que você puder detectar.
Se você se interessou em visitar a exposição, aproveite para visualizar o belíssimo catálogo da mostra, à disposição no site do pintor. Desfrute também da entrevista, por ele concedida à curadoria da mostra, e conheça um pouco melhor a trajetória pessoal de Braun-Vega, seus pensamentos e suas impressões.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O risco de florescer

Durante o show musical de abertura da Copa do Mundo de Futebol da África do Sul, pude ter um primeiro contato com a cantora e compositora Alicia Keys. Confesso que, naquela oportunidade, fiquei muito mais deslumbrada com as apresentações folclóricas, de danças e de costumes tribais africanas. Porém, algo ficou em meu imaginário. Recentemente, em uma visita à FNAC, deparei-me com o último álbum da artista. O tema do cd seduziu-me imediatamente e me propus a ouvi-lo. Após a audição, não resisti e o comprei. Seu título: The Element of Freedom. Tornou-se o meu cd favorito, atualmente. Nele, há uma mescla de ritmos que te convidam a dançar, a cantar e a escutar em alto volume e, por vezes, a simplesmente deixar-se levar pela letra ou melodia. Alicia cria as próprias composições e, ao cantá-las, consegue transmitir toda a sua autenticidade, plena de referências ao feminino, e de alusões à força e à beleza intrínsecas à feminilidade.
Se você não resistir, como eu, e quiser ouvir o cd antes do término deste post, acesse: http://www.aliciakeys.com/us/home
Mas, sem perder as minhas características investigativas e racionais, bem pessoais, também fui fisgada pela citação que abre o cd. De alguma maneira, já conhecia a frase. Não pude reconhecer a referência, tampouco o nome do autor. Na versão em inglês, a cantora diz: “And the day came when the risk to remain tight in a bud was more painful than the risk it took to bloom”. Na minha tradução livre: E chegou o dia em que o risco de permanecer apertada em um broto (botão) era mais doloroso do que o risco necessário para florescer. Significativo, não é mesmo? Não dá para não meditar a respeito. Senti uma ressonância forte dentro de mim. E ainda estou fazendo elaborações muito íntimas sobre este pensamento. Para mim, tem sido uma experiência simplesmente empolgante. Talvez, neste aspecto, resida a familiaridade, o espelhamento. Pura sincronicidade.
A partir de minhas pesquisas, descobri também que a frase compõe o subtítulo de um livro chamado “Journey to Wholeness”, da californiana Barbara Marie Brewster, infelizmente, não publicado no Brasil. Ele retrata a história real da autora que, ao descobrir ser portadora de esclerose múltipla (uma doença grave e degenerativa, muitas vezes letal), decide desabrochar e não mais ficar apertadinha em um broto. Ela optou pela expansão. Isto foi em 1984. Desde então, ela percorreu o mundo. Tornou-se uma “clown”, sendo membro do grupo Patch Adams; trabalhou como voluntária em programas para o atendimento de crianças portadoras de HIV na África; é co-fundadora de uma organização que acolhe refugiados; é escritora; atriz, e se intitula também uma sobrevivente.
Vale acessar ao seu site: http://www.barbarabrewster.com/
As minhas buscas não param por aqui. Também encontrei referências à Anaïs Nin, a controvertida poeta, como sendo autora desta frase. Porém, os resultados ainda são incipientes. Quem sabe, em outra oportunidade, eu possa trazer mais “elementos de liberdade”.
foto de Reislanes in: http://digiforum.com.br/portal/

domingo, 31 de outubro de 2010

A escolha pela vida

Nos últimos dias, vivi experiências de doenças e de morte entre familiares e amigos, que me conduziram a momentos de introspecção e de reflexão. A minha formação religiosa, a minha fé e as minhas crenças me possibilitam lidar com o limiar entre a vida e a morte de uma forma mais sustentada. E, de maneira consciente, consigo acompanhar estas situações com a necessária capacidade de discernimento.
No entanto, diante destas circunstâncias, sou quase sempre impelida a ponderar a propósito das diferentes atitudes, que escolhemos adotar ao longo de nossas vidas, quanto ao cuidado pessoal. Talvez, em decorrência do meu esforço pessoal profícuo e já bastante antigo, em busca da permanente atenção sobre mim mesma.
E percebo que, muitas vezes, optamos pelo caminho das compulsões, quer seja por alimentos, bebidas alcoólicas, cigarro, e porque não dizer por sexo ou trabalho. Como se houvesse uma inesgotável necessidade de preenchimento. Como se a própria condição de estar vivo não fosse o bastante para manter-se pleno e, consequentemente, inteiro. Como se o enorme vazio interior se transformasse em um monstro predador, sempre à espreita, e ameaçador. E exigisse ser nutrido.
Em outra medida, preferimos nos abastecer de estímulos, por intermédio do uso de drogas, medicamentos, aparelhos eletrônicos, consumo, beleza estereotipada e entretenimento. Este padrão comportamental nos arremessa a um estado de excitação permanente. Capaz de nos manter literalmente ocupados, ligados e diretamente desvinculados de nossa vida interior, plena de conflitos, angústias, mas também de alegrias. Elementos verdadeiramente imprescindíveis para o nosso crescimento pessoal.
E o que dizer sobre as manias, neuroses, hipocondria e preocupações infundadas que nos paralisam e nos embotam. E fazem com que nos sintamos encurralados dentro de nossos cotidianos.
Para mim, deixamos de ser os autores de nossas próprias vidas ao adotarmos estas atitudes. Passamos a ser conduzidos pelo turbilhão de necessidades, as quais não foram geradas por nós, mas pelos outros. E estes podem ser vários, mas nunca nós mesmos.
E aí cabe uma opção. A escolha pela vida e não pela morte. Escolher a vida implica, para mim, um olhar amoroso, corajoso e desprendido por si mesmo. Entender como se organiza o meu corpo. Como reajo frente aos acontecimentos. Quais são as minhas dificuldades e limitações. E, sobretudo, quais são os meus talentos e como criar oportunidades para que eles possam emergir.

domingo, 24 de outubro de 2010

Em busca da vida perdida


Ultimamente, tenho observado um número cada vez mais crescente de programas televisivos que podem ser considerados como “reality show” e que preconizam, principalmente, o convívio entre pessoas estranhas, em um ambiente confinado por um longo período. O objetivo central é promover uma competição acirrada entre os participantes, em decorrência da disputa por um prêmio que irá conferir ao ganhador fama, status e, sobretudo, muito dinheiro.
E os temas destes programas são os mais diversos. Há quem almeje ser um executivo bem-sucedido, um cabeleireiro famoso, posar nua em revistas masculinas, tornar-se ator ou atriz etc. E, ao longo dos episódios, os participantes assumem papéis a partir de suas histórias e conteúdos muito pessoais que irão se configurar em personagens e estereótipos muito recorrentes em nossa sociedade. Surge, então, aquele que irá personificar o vilão, a mocinha. O amigo, a inimiga. O traidor, a esperta e por aí vai. Confesso que assisti muito pouco a estes programas, no entanto, acompanho o debate na mídia e entre amigos e percebo que, de certa maneira, estes programas instigam as pessoas a se identificarem com os personagens, que na verdade são reais. E de alguma forma passam a “torcer” por um ou por outro.
Como entender este processo?
De fato, para mim, noto que com o advento da Internet e da possibilidade da notícia em tempo real, fomos inseridos em um novo contexto que mantém o indivíduo em contato permanente com o mundo exterior vivo. Como um exemplo contundente, lembro-me do episódio de 11 de setembro, quando ocorreram os ataques terroristas nos Estados Unidos. Pela primeira vez, noticiou-se uma tragédia de proporções descomunais, ao vivo, para todo o planeta. Este era o assunto mais freqüente nas conversas em diferentes lugares: bares, escolas, locais de trabalho, igrejas etc.
E seguiram-se outros episódios. A queda do avião da Air France, talvez por ter decolado do Brasil, provavelmente, gerou uma enorme comoção nacional. Impressionava-me o fato das pessoas conhecerem detalhes da vida pessoal dos acidentados e fazerem especulações acerca do futuro dos parentes dos sobreviventes.
Recentemente, acompanhamos a saga dos mineiros soterrados nas minas do Chile. Novamente, todo o conhecimento tecnológico foi posto à disposição para socorrer as vítimas, mas também para abastecer os espectadores ávidos de informações que pudessem, possivelmente, preencher os vazios de suas vidas. Talvez aí resida a lógica deste processo. Percebo que as pessoas, em nossa sociedade, movem-se em busca de mecanismos que possam mantê-las vivas. Mas não de uma forma saudável, criativa e inspiradora. Elas são sustentadas por sensações, prazeres e estímulos incessantes que camuflam a solidão atroz presente nas grandes cidades. Então, talvez, viver a experiência da dor e perda nas tragédias mundiais, ou acompanhar quase que pessoalmente o desempenho de personagens em programas televisivos, crie a falsa impressão de uma identidade. E mais, manter-se literalmente preso e dependente de uma tela de televisão ou de um computador, de forma assustadoramente passiva, tem gerado uma legião de dependentes de imagens e sensações imagéticas. Segundo um pensador contemporâneo alemão Christoph Türcke, em entrevista a Marcos Flamínio Peres, do jornal Folha de São Paulo, a sociedade da sensação se materializa no fetiche. Para ele, “fetiches são sintomas de abstinências, substitutos de algo de que se foi dolorosamente privado.”
Para ler a entrevista na íntegra, acesse:

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Aos pés do poeta



Tive a feliz oportunidade de conhecer a mostra sobre o poeta Fernando Pessoa, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, e pude desfrutar de excelentes momentos de convívio com a obra deste autor extraordinário.
Ao percorrer a exposição, pude notar que a curadoria faz um convite, ao leitor e apreciador do poeta, a experimentar, de forma quase sinestésica, a heteronímia, tão característica e tão própria deste autor.
E a coordenação da apresentação também foi muito bem-sucedida ao proporcionar ao visitante uma gama variada de instrumentos ora midiáticos, ora ilusionistas e certamente a oferta de livros para manuseio e leitura. Além de uma cronologia histórica que compõe um panorama da vida do poeta.
É muito agradável ter a chance de interagir de forma real e dinâmica com excertos de poemas consagrados. É simplesmente encantador, e por vezes mágico, poder andar pelos labirintos da mostra em busca de fragmentos da natureza deste querido poeta português, que soube muito bem expressar a sua multiplicidade estética e literária de forma bastante particular.
Confesso que tive vontade de lá permanecer por muito tempo. Exatamente, como me comporto no momento da leitura de um poema de Pessoa: leio, releio. E, então, fecho os olhos e divago. Como diria o poeta:
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”
Não deixe de ir ao museu para desfrutar de instantes de pura poesia.

sábado, 16 de outubro de 2010

A perda de um ideal



Não tive interesse em assistir à primeira edição do filme Tropa de Elite no ano de seu lançamento. A proposição violenta, focalizada nas medidas adotadas por policiais para deter o crime organizado na cidade do Rio de Janeiro, bem como o desnudamento do mundo da criminalidade, não ofereceram atrativos que me conduzissem ao cinema. Definitivamente, o confronto entre mocinhos e bandidos e todas as suas partes constituintes não integram o meu rol de preferências conceituais.
Entretanto, senti-me instigada a ver a nova versão em cartaz, a partir de uma propaganda em que pude notar que novos elementos foram acrescentados à trama. Do meu ponto de vista, há uma humanização do personagem central, o policial Nascimento, o que lhe propicia uma ampliação de sua visão de mundo e lhe confere uma postura mais reflexiva. Esta mudança de ponto de vista faz um convite, a nós expectadores, a um mergulho no perfil psicológico deste que seria um ícone do justiceiro.
No decorrer da apresentação cinematográfica, detive-me em observar o significativo grau de mudança no olhar e na expressão facial da figura do policial. Isto é, foi possível reconhecer a sua desesperança, a sua decepção e a sua enorme solidão. Também a sua postura corporal modifica-se: acentua-se a curvatura da coluna, os ombros caem e surge uma ligeira projeção à frente do abdome, como se todo o seu desenho corpóreo colapsasse. Para mim, esta falência imagética e aparente retrata a decomposição de um idealista em confronto com uma realidade imutável. A despeito de toda a conotação política do filme, acredito que valha a pena assistir ao longa-metragem.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O primeiro voo



Fizemos, no final de semana, um agradável programa em família ao assistir ao filme A Lenda dos Guardiões. O tema central do longa-metragem diz respeito à eterna luta do bem contra o mal, uma questão muito frequente na literatura universal e que reiteradamente subsidia ao cinema. Neste filme, em particular, a batalha é travada entre corujas, que ao personificarem guerreiros, buscam a manutenção de seus legados de conhecimento e de poder e a consequente perpetuação de suas espécies, exércitos e princípios. A trama engloba também temáticas complexas que incluem a rivalidade entre irmãos, a subserviência ao poder, a inveja, a cobiça, a violência, a sabedoria e a coragem, entre outras. Estes elementos de alguma forma fazem parte da realidade das crianças e apresentados no cinema propiciam uma reflexão conjunta muito significativa.
Houve uma cena que me emocionou e que despertou a curiosidade de meu filho. E ela acontece quando o personagem principal Soren, um “corujinho”, aprende a voar com aquele que seria o seu professor, ou até mesmo um mestre. A coruja mais velha lança o pequeno aprendiz em meio a um ambiente adverso e o instiga a voar. Percebendo a dificuldade de seu aluno, o mentor o convida a utilizar a sua moela e assim vencer os obstáculos.
Meu filho quis entender o que seria a moela e de que forma a pequena ave deveria usá-la. A explicação que lhe dei foi a de que a moela é uma parte do aparelho digestivo de alguns animais e a sua função é triturar previamente os alimentos antes de sua absorção pelo organismo. E considerei ainda que, neste filme, a moela também seria uma alegoria para que o pequeno “corujinho” resgatasse a sua força interior (“inner force”), que o levaria à superação das dificuldades. Algo inato à sua natureza mais íntima. Acrescentei que, nesta região do corpo, fica o nosso centro de poder e de força pessoal, segundo muitas tradições. Mas esta é a minha leitura. Pedi a ele que buscasse entender também do jeito dele. Ainda vamos retomar esta conversa.
Por fim, impressionou-me bastante a beleza das imagens sempre noturnas, condizentes com a vida das corujas e sugerindo uma atmosfera "new age"; o que para mim é muito semelhante a algumas cenas de Avatar, de James Cameron. Aliás, o mesmo símbolo da árvore, com seus troncos e galhos que se assemelham a portais, e toda a sua força e majestosa conexão com a terra, está nas duas películas. Talvez não por acaso.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

À espera do desabrochar



Assisti, ontem, ao novo filme Dois Irmãos, do cineasta argentino Daniel Burman, e pude compreender, de maneira muito pessoal, a trajetória do personagem Marcos. Sexagenário, solitário e solteiro, ele dedicou sua vida a cuidar de sua mãe. Com o advento de sua morte, Marcos muda de cidade e, aos poucos, rompe relações também com a sua irmã, extremamente possessiva e controladora, e sai em busca de experiências mais descomprometidas e despretensiosas, porém muito mais autênticas. É é neste exercício daquilo que lhe é próprio, que Marcos se reinventa e se redescobre. Vale a pena assistir.
Muitas vezes em minha vida também me percebi completamente voltada para o outro, para o futuro, para o devir, com a expectativa de que surgissem acontecimentos que me despertassem; como se uma varinha mágica me tocasse de alguma forma e me transportasse de meu cotidiano, muitas vezes destituído de existência, para uma outra dimensão minha.
E, sem perceber, acabava por me afastar exatamente de mim mesma.
Os ensinamentos budistas e o conhecimento advindo da tradição yóguica me ensinaram a importância de manter-me no presente, no aqui e agora. E naturalmente me conduziram por vivências em que pude estar intimamente em contato com a minha alma. E saí delas muito mais fortalecida. As práticas terapêuticas e os diversos cursos de autoconhecimento também me encorajaram no meu particular exercício de mim mesma. E, assim como o personagem Marcos, percebo hoje que é possível nutrir-me de minhas próprias experiências e que as minhas expectativas atuais partem daquilo que já existe dentro de mim. De potencialidades e habilidades pré-existentes, que em um momento possível irão surgir.
Há uma linda canção da norte-americana Norah Jones, que se intitula Turn me on, a qual não me canso de ouvir. Ao som do piano e sob uma voz melodiosa, a letra da música conta com diversos elementos para falar sobre esta expectativa intrínseca; sobre a espera por algo que promova a retomada da conexão com a vida. Diz a canção: Como uma lâmpada que ilumina um quarto escuro. Como crianças na escola que anseiam pela primavera. Como um copo aguarda cubos de gelo refrescantes. Como o deserto aguarda a chuva. Como uma flor que espera o desabrochar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Tempo para envelhecer



Iniciei, hoje, a leitura do livro recente de Lya Luft: Múltipla Escolha (Ed. Record) e as indagações têm surgido de forma incessante. A autora escreve de maneira contundente e extremamente verdadeira, a tal ponto que pode nos impressionar de certo modo. Chamou a minha atenção o capítulo dedicado à velhice: "Para que "espírito jovem"? Quem nos convenceu de que o nosso espírito de agora é pior, de que toda a experiência nada vale, as descobertas, um mundo que se abriu em tantos anos?"
Segundo a escritora, os valores de nossa sociedade contemporânea demandam um estado de vigilância permanente em prol da beleza, da juventude e do prazer a todo custo. Envelhecer é um verbo a não ser conjugado.
Busca-se ser bela de uma forma homogênea, uniforme. Mulheres recém-saídas de uma linha de produção em série. Perde-se a identidade. O particular e o inusitado dão lugar ao genérico, às mesmices do cotidiano.
Manter-se jovem a qualquer preço deforma corpos, mutila sentimentos e conduz os conflitos psicológicos e as emoções reprimidas aos subterrâneos da psique. Daí a profusão de medicamentos disponíveis no mercado, que visam aplacar aquilo que não pode ser visto, ou dito.
Em nossa cultura midiática atual, prevalecem as sensações mais superficiais e imediatistas. O prazer torna-se algo imprescindível, fugaz e momentâneo e gera distorções de comportamento, desencadeando vícios e compulsões. E, consequentemente, esvaziam-se as relações afetivas.
Não há espaço, assim, para longas conversas, leituras demoradas ou para simplesmente nada fazer. E o que dizer do envelhecimento?
Infelizmente, não nos preparamos para vivenciar a velhice de forma plena e serena. Mesmo porque, ao longo de nossas vidas, está sempre muito presente um sentimento de inadequação.
Ainda não concluí a leitura do livro. No entanto, decidi refletir sobre este capítulo, em particular, movida por uma sincronicidade de eventos. Há duas semanas, pude assistir à peça "As Três Velhas" dirigida e encenada pela grande atriz Maria Alice Vergueiro. Para quem for contemporâneo meu, deve se lembrar do extinto grupo teatral Ornitorrinco, dirigido por Cacá Rosset. A peça é impactante pela irreverência do tema, pela forma como a velhice é abordada e sobretudo pelo fato da atriz Maria Alice, outrora "vedete", mostrar-se em plena forma, com o mesmo brilho do olhar, no auge dos seus 75 anos e sobre uma cadeira de rodas. Recomendo muitíssimo a ida ao Centro Cultural Banco do Brasil para viver esta experiência.
imagem: Schönfeld, Johann Heinrich - Allegory of Time (Chronos and Eros)
Galleria Nazionale d´Arte Antica - Rome

domingo, 3 de outubro de 2010

Fechar os olhos

Ontem, pude assistir em dvd ao filme Um Sonho Possível, estrelado por Sandra Bullock, obra que lhe concedeu o oscar de melhor atriz em 2010. Não tenho o interesse aqui de estabelecer uma discussão sobre o filme em si, tampouco sobre toda a cinematografia hollywoodiana que o ancora. De fato, o que mais me chamou atenção no filme diz respeito ao perfil psicológico e à história pessoal de vida do rapaz negro, cujo personagem foi representado pelo ator Quinton Aaron. O filme baseia-se em uma história verídica sobre o encontro entre uma família rica norte-americana de Memphis e um jovem adolescente negro, órfão de pai e cuja mãe era usuária de crack. Apesar de seu histórico familiar e de sua origem racial, o jovem é admitido em uma escola de classe média alta e frequentada predominantemente por brancos. Isto porque há um interesse explícito do treinador de futebol da escola em prepará-lo para compor a sua equipe, uma vez que o rapaz é muito alto e corpulento.


Inicia-se, então, o desenrolar da trama. Segundo as palavras do próprio treinador, espera-se que um menino que tenha vivido situações tão adversas como o abandono, privações e violência sinta a necessidade de extravasar uma potente raiva contida e, portanto, as partidas de futebol atuariam como um oportunidade para corporificá-las. Porém, não é o que acontece com Michael, ou "Big Mike", como é chamado no filme. Durante os momentos mais difíceis de sua vida, ele aprendeu com a sua mãe a "fechar os olhos" para se proteger e não presenciar cenas que pudessem feri-lo de alguma forma. Ele desenvolveu, assim, um elevado grau de autoproteção. O seu sucesso enquanto jogador de futebol somente surgirá quando ele usar este seu talento a seu favor. Vale a pena ver o filme e deter o seu olhar sobre esta particularidade. O título original do filme em inglês é "Blind Side", que poderia ser traduzido literalmente como Lado Cego. O que me sugere que Michael não se esquivou ou se escondeu de uma realidade cruel. Ele fechou os olhos para ela, o que felizmente lhe possibilitou não ser brutalmente ferido e, principalmente, tornou-se um ser amoroso e fraterno.

sábado, 2 de outubro de 2010

A Sua Bliss



Desde muito pequena, havia dentro de mim uma necessidade de me expressar através da escrita. Ensaiei criar poemas e pequenas histórias. No entanto, por um longo tempo, represei esta veia criativa e preferi mergulhar profundamente nos livros. Desde então, eles se tornaram meu amigos e fiéis interlocutores. Felizmente, foi por intermédio de um deles que decidi resgatar esta vocação. Acabei de concluir a leitura de um livro muito especial: O Feminino e o Sagrado - Mulheres na Jornada do Herói, de Beatriz Del Picchia e Cristina Balieiro, editado pela Ágora, 2010. Tomando-se como referência teórica o pensamento de Joseph Campbell (o mitólogo norte-americano), as autoras reuniram em um livro a trajetória de 15 mulheres, cujas estórias e particularidades ora se assemelham, ora se distanciam criando um mosaico de temas intrínsecos à feminilidade de uma maneira geral. Ou seja, é possível reconhecer aspectos muito peculiares do universo feminino em cada uma delas e compor um todo bastante rico.
E foi justamente a partir do relato destas vivências e experiências femininas que, ao longo de suas trajetórias, buscaram de alguma forma um verdadeiro sentido para suas vidas, que despertou em mim um desejo de retomada da escrita. E a criação deste blog foi a tentativa da adoção de uma ferramenta contemporânea capaz de possibilitar um espaço aberto à minha reflexão e a de outras pessoas que por ventura venham a compartilhar comigo este momento.
Se você tiver a oportunidade de ler o livro, talvez, assim como eu, você possa encontrar fragmentos de sua história pessoal entre as diversas escolhas que estas mulheres retratadas fizeram. E perceber o quanto você já caminhou. O quanto você já conquistou. Este espelhamento que a leitura do texto provocou em mim, talvez também mobilize algo dentro de você. São relatos plenos de vida, aventuras, tentativas e acertos, medo, muitas incertezas mas, sobretudo, depoimentos repletos de coragem. Cada uma destas mulheres, assim como você e eu, buscam a sua "bliss", a sua felicidade, possível quando fiéis às suas verdadeiras naturezas.